
Segunda Carta
Querido Gabriel
Obrigado por sua carta.
Querido Gabriel
Obrigado por sua carta.
O papel pousado sobre a mesa segreda motivos que não cabem nos conceitos das palavras, mas extrapolam a grafia porque pertencem a algo a que não sabemos dar nome. Sua carta foi uma visita agradável que recebi. Chegou quando não a esperava e quebrou a sequência do meu cotidiano. Floresceu diante de meus olhos, assim como o ipê desafia as regras do inverno e se reveste de flores. Meu caro amigo, diante de suas confissões, concluo mais uma vez que a dor é um território santo. Há uma passagem na Sagrada Escritura que considero de beleza insondável. Moisés estava diante de uma sarça que ardia sem se consumir, quando ouviu o imperativo de Deus: “Retira as sandálias dos teus pés, porque este solo que pisas é santo!”. Confesso que este imperativo musicou meu coração durante a leitura de sua carta. A trilha sonora fez com que as palavras lidas se misturassem às palavras recordadas. É a partir desta simbiose que lhe respondo. Confesso que estou temeroso. Não gosto de respostas apressadas. Tenho medo de dizer, sem dizer, afinal, que o que há de mais precioso nesta vida costuma ser vivido e experimentado a partir do silêncio frutuoso. Carlos Drummond de Andrade, o poeta mineiro que você admira profundamente, recomendava que, antes de escrever os poemas, é preciso conviver com eles. Ele insinuava que antes do nascer da palavra há sempre um sabor de silêncio que precisa ser sorvido. Creio que o poeta tinha razão. A boa palavra se alimenta de silêncios e pausas. Um grande poema costuma nascer de profundas e fecundas experiências de contemplação da realidade. O poeta, ao enxergar o silêncio do ainda não dito, diante dele se prostra e o experimenta, e somente depois o reveste de palavras. Suas perguntas são religiosas. Elas buscam unir as pontas da corda que amarra a vida e a sustenta de sentido. Costumo dizer que a dor é uma quebra da corda, porque nos retira da segurança. Há acontecimentos que nos fazem mergulhar no absurdo da existência. O absurdo é a ausência de sentido. É o momento da vida em que a alma se sente penetrada e transpassada por uma dor lancinante. É no momento do desespero que experimentamos a nossa humanidade em suas dimensões mais venturosas. Os exemplos já foram postos por você. Cora Coralina só foi a mulher que foi porque não fugiu dos absurdos do mundo. Deles fez poesia qualificada. A alma transliterada nos faz mergulhar nos recônditos de uma mulher que não viveu por acaso. A dor transmudada, redimida, purificada nos calvários da escrita que o ofício poético lhe reservou na velhice tem o poder de nos devolver a apetência do sonho. Cora Coralina nos encoraja a enxergar as belezas que se escondem nas tristezas. Há um poema belíssimo em que ela narra a demolição do sobrado que marcou os áureos tempos de sua mocidade. A descrição minuciosa do acontecimento nos leva a experimentar os mesmos sentimentos que ela. Eu, que nunca havia pisado as soleiras do nobre sobrado, chorei com ela a a movibilidade daquelas paredes tão frágeis. Gabriel, vez ou outra nós também presenciamos a demolição de nossos sobrados interiores. Vez ou outra precisamos encarar os monturos que restaram de nossas realidades. É o tempo, e sua batuta implacável a reger os acontecimentos. É o inevitável e seus dentes afiados. Meu amigo, ao narrar a morte de seu irmão, pude reconhecer em suas palavras o ruir de uma presença humana. Sobrado suntuoso, acolhedor, ocupando a centralidade de sua cidade interna. Seu irmão cumpria o ofício de ser parede protetora, telhado que o resguardava de seus medos; varanda que lhe permitia contemplar o bom da vida, naquilo que chamamos de fraternidade. Um dia a fatalidade o resgatou. O sobrado foi demolido, assim como fora o sobrado de Cora. Da mesma forma seu pai, o homem que projetou a arquitetura de seu caráter e que lhe ensinou tudo o que você sabe sobre a bondade, também foi embora de maneira definitiva. Grandes perdas, grandes pedras. Grandes aprendizados, grandes flores. Gabriel, tenho contemplado de perto os calvários da humanidade. Mulheres com os filhos mortos nos braços, gritando pelo sentido, chorando a dor que não tem nome, a inversão brutal das regras da vida, o absurdo de ver partir, antes do tempo, a cria de suas carnes. Mulheres semelhantes àquela que entrou em sua vida através de uma carta e que reivindicava o direito de compreender o mistério da morte de seus inocentes. Mais uma vez eu me recordo de Drummond e de seu sábio conselho: “Convive com os teus poemas antes de escrevê-los”. Meu caro amigo, há acontecimentos que não combinam com explicações. E, mesmo que explicações existissem, não seriam capazes de aplacar a dor que provocaram. Nem sempre os claros e objetivos postulados da razão cartesiana conseguem resolver as questões humanas. Saber o porquê da morte não sana nem preenche a ausência sentida. Como homem da religião, tenho constatado que o discurso religioso, quando mal aplicado, pode ser tão nocivo quanto o discurso desumano dos assassinos. Escuto absurdos sobre Deus, quando pessoas movidas por boas intenções resolvem explicar as fatalidades do mundo. Frases simplórias e descomprometidas com a verdade não resolvem; ao contrário, agravam ainda mais o sofrimento, porque geram orfandade, descrença e abandono. Justificam as tragédias humanas como “vontade divina”, retirando assim a responsabilidade humana dos acontecimentos, fruto das escolhas que fazemos. Respondem a tudo e a todos como se o desvelamento do mistério pudesse resolver as questões. Eu ainda prefiro o abraço solidário, o silêncio que nos permite proximidade e o comprometimento com a dor que me toca. Ainda prefiro sentir o vento frio do calvário a procurar o aquecimento mórbido do sepulcro que nos cala antes da hora. Gosto de compreender as religiões como tentativas humanas de refazer a corda. Tenho medo quando o discurso religioso é utilizado para responder de forma mágica a questões que são humanas, sangradas no asfalto das cidades, em lugares que nossos olhos não alcançam. Por isso não tenho receio de afirmar que o específico das religiões não consiste em responder às perguntas, mas em nos ensinar a conviver com elas. Na tentativa de resolver os conflitos que nos afligem, corremos o risco de atentar contra a sacralidade dos fatos. Dessa forma, deixamos de plantar as flores e insistimos em chorar sobre as pedras. Diante do sobrado demolido, Cora Coralina resolveu escrever o poema, pois sabia que as palavras poderiam resguardar o significado de tudo o que as pedras insistiam em sepultar. Gosto de compreender a ressurreição de Jesus da mesma forma. Diante da ausência sentida, a saudade fez o apóstolo intuir e proclamar: “Ele está no meio de nós!”. O grito nasce do reconhecimento da transformação acontecida. Eles não eram mais os mesmos. O sobrado crístico já estava erigido na alma de cada um. João, o homem que era chamado “filho do trovão”, o homem de temperamento difícil, revestia-se de docilidade. Pedro, o homem que mal sabia falar, o homem que foi frágil até o momento da morte do melhor amigo, estava mergulhado numa coragem invejável. Eles se olhavam e percebiam que Ele não havia ido embora, mas apenas modificara a forma de ficar. [...]
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