Dias pesados são estes que aproximam-se. Datas, tempo, passado, tanto se ouve sobre isso, tempo não existe, passado não existe ... mas as datas estão aí. Dia disso, dia daquilo... dia de luto é pecado. Todo mundo foge. Podemos comemorar Natal, aliás, devemos comemorar Natal, senão estamos fora do contexto tido como normal. Podemos e devemos comemorar Páscoa, Ano Novo, nunca esquecer de Hiroshima, 11 de setembro, e tantas outras datas de renascimento e morte. Só não podemos lembrar das nossas datas, das nossas Hiroshimas e Nagasakis particulares, pois isto parece tão pequeno perto de tanta desgraça. Mal se percebe que o mau maior é a soma dos pequenos males. Um surto começa sempre com um caso.
Le soleil ni la mort ne se peuvent regarder en face.
(Nem o sol nem a morte podem ser olhados fixamente.)
François de La Rochefoucauld, Máxima 26
A morte, entretanto, nos chama. Ela nos chama o tempo todo; está sempre conosco, arranhando uma porta íntima, sussurrando suavemente, quase inaudível, sob a superfície da consciência. Nosso nascimento é apenas o começo de nossa morte.
Epícuro ensinava que a alma é mortal e perece com o corpo, postulando então que o que desaparece não causa percepção, e qualquer coisa não percebida não é nada para nós. Em outras palavras, onde eu estou a morte não está, onde a morte está, eu não estou. O argumento que ele (Epicuro) defende é que o nosso estado de não ser após a morte é o mesmo no qual nos encontrávamos antes do nascimento. Será?
É como a comparação que Marie Louise Von Franz em seu livro o Caminho dos sonhos faz em relação à Deus. É como um buraco na cerca, o buraco só existe porque existe a cerca. O visível torna visível o invisível. Sem a cerca não há buraco. Vladimir Nabokov, romancista russo em Fala, começa sua biografia com esta frase: "O berço balança acima de um abismo, e o bom senso diz que nossa vida não é mais que uma efêmera fresta de luz entre duas eternidades de escuridão."
A tua passagem foi rápida demais, intensa demais, marcante demais. Tudo demais.
E possivelmente seja esta a razão de deixar até mesmo a dor demais, misturada com alegria demais, somando isso dá loucura demais. Vida demais, ausência demais ...
Francis Thompson escreveu: "Nascemos na dor de outra pessoa, e morremos em nossa própria dor". Você nasceu da minha dor e da minha alegria, e morreu na minha dor. Ficaram as lembranças que continuam vivas em mim, e que me fazem viver, ou não desistir. E será assim até o dia em que eu também tenha morrido e passe a ser apenas uma lembrança viva para alguém. Quem sabe!
A transitoriedade é eterna, tentativas de preservar a identidade pessoal são inúteis.
O amor é eterno enquanto temos consciência dele. Sei que meu amor é eterno, mas esta é a única afirmação que posso fazer sem medo de errar. Você deixou atrás da vida que voce viveu algo de experiência de vida, de sabedoria, orientação, virtude, conforto deixado à terceiros, conscientemente ou não, e isso faz toda a diferença.
A ferida emocional deixada por esta tua passagem breve, ou morte, é real e muito pesada para ser levada sozinha. Ter a capacidade de continuar e de dizer sim à vida, mesmo diante do golpe da perda não é para qualquer um. Tem que ser muito forte para continuar, ou muito covarde para não tentar abreviar a vida. A morte é o fim da presença física e não do relacionamento, pelo menos para quem fica, que é a posição em que me coloco. O outro lado eu ainda não conheço, se existir um outro lado.
"Querer esquecer e apagar as lembranças é matar a quem se perdeu. É matar o amor que persiste.
Com certeza esta vivência da perda está tatuada em nosso ser, marcada a ferro e fogo, mas pode ser transformada em abençoada lembrança, que não pode ser roubada. As lágrimas descem, elas fazem parte daquilo que sou e eu as deixo fluir como convém, fazendo delas uma almofada para o meu coração. Nelas, você e eu descansamos". Adptado de: Agostinho, Confissões, IX,12
Pedaço de Mim
Chico Buarque
Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar
Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais
Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu
Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi
Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus
Quando finalmente sabemos que estamos morrendo, e todos os outros seres sensíveis estão morrendo conosco, começamos a ter uma percepção ardente, quase de cortar o coração, da fragilidade e da preciosidade de cada momento e de cada ser, e dela pode surgir uma compaixão profunda, luminosa e ilimitada por todos os seres.
Sogyal Rinpoche, em O livro tibetano do viver e do morrer.
Um comentário:
Depois de ler todo o texto o único comentário que considero pertinente é deixar um abraço.
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